1.8.13

COMO LER A BÍBLIA SEM MUDAR DE PARECER


A Bíblia é muito mais con­ser­va­dora do que nós mes­mos, por isso na inter­pre­ta­ção da Bíblia deve nos guiar e deve­mos sem­pre per­se­guir den­tre as diver­sas inter­pre­ta­ções pos­sí­veis aque­las mais conservadoras.
Porém mesmo os intér­pre­tes mais aus­te­ros e menos libe­rais con­cor­dam que a Bíblia con­tém mate­rial his­to­ri­ca­mente con­di­ci­o­nado – isto é, mate­rial que se a Escri­tura tivesse sido escrita nos nos­sos dias viria dito de forma dife­rente e quem sabe oposta, e que só encontra-​​se regis­trado como está por causa da época remota e da cul­tura par­ti­cu­lar em que foi redi­gido. É neces­sá­rio que pen­se­mos assim, por­que entendendo-​​as como his­to­ri­ca­mente con­di­ci­o­na­das pode­mos inva­li­dar por com­pleto as pas­sa­gens bíbli­cas que con­tra­di­gam ou ame­a­cem a inte­gri­dade (isto é, o con­ser­va­do­rismo) da nossa pró­pria posição.
Como regra geral, pode­mos des­car­tar como his­to­ri­ca­mente con­di­ci­o­na­das quais­quer pas­sa­gens bíbli­cas que nos con­vi­dem ou desa­fiem a uma posi­ção pes­soal ou comu­ni­tá­ria mais gene­rosa, mise­ri­cor­di­osa ou tole­rante, e deve­mos con­si­de­rar como eter­na­mente váli­das aque­las que cor­ro­bo­rem a estrei­teza de nosso pró­prio código com­por­ta­men­tal e social. Por exem­plo, se São Paulo nos diz que as mulhe­res devem per­ma­ne­cer cala­das e sujeitar-​​se em todas as coi­sas ao homem, ou que todas as rela­ções homos­se­xu­ais são ilí­ci­tas, é nossa obri­ga­ção como cris­tãos con­si­de­rar esses jul­ga­men­tos como eter­na­mente váli­dos, ape­sar de sua seve­ri­dade ou, ainda, pre­ci­sa­mente devido a ela. Se o mesmo São Paulo nos diz que Jesus é o sal­va­dor de todos os homens, ou quando São João poe­tiza que Deus é amor ou quando o pró­prio Jesus ver­seja que demos tudo aos pobres e ame­mos os ini­mi­gos e que as pros­ti­tu­tas entram no reino do Céu antes dos reli­gi­o­sos, pode­mos com segu­rança supor que esta­vam falando em lin­gua­gem sim­bó­lica ou a par­tir da limi­tada visão cul­tu­ral do mundo em que viviam, sendo que esse con­texto his­tó­rico res­trin­gia e macu­lava a cla­reza dos seus julgamentos.
Tudo na Bíblia que nos incen­tive a con­de­nar os outros pode com segu­rança ser con­si­de­rado orto­do­xia; tudo que nos incen­tive a mudar a nossa pró­pria posi­ção em dire­ção ao amor (e por­tanto a uma pos­tura liber­tá­ria e à ine­vi­tá­vel per­di­ção) deve ser con­si­de­rado como tendo sido escrito por­que, a par­tir da sua pers­pec­tiva his­tó­rica limi­tada, os auto­res bíbli­cos não enxer­ga­vam as coi­sas com cla­reza sufi­ci­ente para ter arti­cu­lado a ver­dade de forma mais severa e por­tanto inequívoca.
Como se vê, trata-​​se essen­ci­al­mente de tomar aque­las por­ções da Escri­tura que esta­vam cla­ra­mente fada­das a mudar com o tempo (por exem­plo, a per­cep­ção daque­las inte­ra­ções soci­ais que as pes­soas de uma cul­tura con­si­de­ram acei­tá­veis) e tratá-​​las como se fosse imu­tá­veis e eter­nas; e tomar aque­las ideias da Escri­tura que esta­vam cla­ra­mente des­ti­na­das à eter­ni­dade (como a irman­dade uni­ver­sal entre os homens, a con­de­na­ção radi­cal da ganân­cia e a rejei­ção de toda domi­na­ção e vio­lên­cia) e tratá-​​las como se fos­sem sujei­tas ao tempo e não apli­cá­veis a todas as épocas.
Em caso de dúvida, sirva-​​nos de guia a deci­são da assem­bleia no Con­cí­lio Para-​​ecumênico de Vali­nhos: toda inter­pre­ta­ção que nos con­vide à tole­rân­cia é ten­ta­ção satâ­nica; toda inter­pre­ta­ção que nos incite à mes­qui­nhez é meritória.