A Bíblia é muito mais conservadora do que nós mesmos, por isso na interpretação da Bíblia deve nos guiar e devemos sempre perseguir dentre as diversas interpretações possíveis aquelas mais conservadoras.
Porém mesmo os intérpretes mais austeros e menos liberais concordam que a Bíblia contém material historicamente condicionado – isto é, material que se a Escritura tivesse sido escrita nos nossos dias viria dito de forma diferente e quem sabe oposta, e que só encontra-se registrado como está por causa da época remota e da cultura particular em que foi redigido. É necessário que pensemos assim, porque entendendo-as como historicamente condicionadas podemos invalidar por completo as passagens bíblicas que contradigam ou ameacem a integridade (isto é, o conservadorismo) da nossa própria posição.
Como regra geral, podemos descartar como historicamente condicionadas quaisquer passagens bíblicas que nos convidem ou desafiem a uma posição pessoal ou comunitária mais generosa, misericordiosa ou tolerante, e devemos considerar como eternamente válidas aquelas que corroborem a estreiteza de nosso próprio código comportamental e social. Por exemplo, se São Paulo nos diz que as mulheres devem permanecer caladas e sujeitar-se em todas as coisas ao homem, ou que todas as relações homossexuais são ilícitas, é nossa obrigação como cristãos considerar esses julgamentos como eternamente válidos, apesar de sua severidade ou, ainda, precisamente devido a ela. Se o mesmo São Paulo nos diz que Jesus é o salvador de todos os homens, ou quando São João poetiza que Deus é amor ou quando o próprio Jesus verseja que demos tudo aos pobres e amemos os inimigos e que as prostitutas entram no reino do Céu antes dos religiosos, podemos com segurança supor que estavam falando em linguagem simbólica ou a partir da limitada visão cultural do mundo em que viviam, sendo que esse contexto histórico restringia e maculava a clareza dos seus julgamentos.
Tudo na Bíblia que nos incentive a condenar os outros pode com segurança ser considerado ortodoxia; tudo que nos incentive a mudar a nossa própria posição em direção ao amor (e portanto a uma postura libertária e à inevitável perdição) deve ser considerado como tendo sido escrito porque, a partir da sua perspectiva histórica limitada, os autores bíblicos não enxergavam as coisas com clareza suficiente para ter articulado a verdade de forma mais severa e portanto inequívoca.
Como se vê, trata-se essencialmente de tomar aquelas porções da Escritura que estavam claramente fadadas a mudar com o tempo (por exemplo, a percepção daquelas interações sociais que as pessoas de uma cultura consideram aceitáveis) e tratá-las como se fosse imutáveis e eternas; e tomar aquelas ideias da Escritura que estavam claramente destinadas à eternidade (como a irmandade universal entre os homens, a condenação radical da ganância e a rejeição de toda dominação e violência) e tratá-las como se fossem sujeitas ao tempo e não aplicáveis a todas as épocas.
Em caso de dúvida, sirva-nos de guia a decisão da assembleia no Concílio Para-ecumênico de Valinhos: toda interpretação que nos convide à tolerância é tentação satânica; toda interpretação que nos incite à mesquinhez é meritória.